quarta-feira, 29 de junho de 2016

TIRANIA INFANTIL



As contínuas transformações sociais vieram alterar radicalmente as relações parentais nas últimas décadas. A criança foi ganhando estatuto e direitos graças a uma tomada gradual de consciência das sociedades ocidentais, tendo sido considerada pessoa com direitos e merecedora da atenção dos pais, cada vez mais atentos e cuidadores, nos anos sessenta, pela pedopsiquiatra francesa Françoise Dolto.

Depois da Segunda Guerra, surgiram leis de proteção à infância. Os jovens ganharam visibilidade e mediatismo e as famílias diminuíram com a emancipação da mulher trabalhadora e independente que segundo Mary Del Priore, autora do livro “História das Crianças no Brasil”, passa a querer ter menos filhos para criá-los bem: “Há uma transformação no papel dos pais e a criança ganha lugar como consumidora”.

A criança obediente e disciplinada foi-se transformando no centro das atenções de pais com tremenda culpa pela sensação de falta de tempo, e, que, por vezes cansados, perderam lugar na autoridade parental e permitiram gradualmente o crescimento de crianças exigentes e autoritárias.

Tania Zagury, mestre em educação e autora de “Limites Sem Trauma” identifica o surgimento da tirania infantil no início dos anos 1990.  Considera que os pequenos tiranos de hoje são resultado do encontro de duas gerações sem limites: uma de extrema autoridade e outra de total permissividade.

Ana Vieira de Castro refere: “a criança vê, desde a mais tenra idade, todos os seus desejos e vontades serem imediatamente atendidos por pais culpados, infinitamente solícitos e pacientes, que a procuram compensar a todo o custo. Desde o nascimento, atrás de um choro, vem um colo, um biberão. Já mais crescidos e mais reivindicativos, os pais evitam os conflitos, após um dia extenuante de trabalho, prevalecendo a necessidade de descanso, cedendo e permitindo-lhes as exigências que em nada facilitarão a aprendizagem da frustração decorrente de um crescimento saudável, em que se espera que as crianças aprendam progressivamente a consolarem-se a si próprias.

A criança tirana apodera-se do espaço familiar, exige uma atenção frequente dos pais e domina-os sem oposição, com graves consequências futuras na sua auto-estima, pois o que dominam na perfeição dentro de casa, ao deslocarem este modelo de autoridade para o seu ambiente social/escolar, a autoridade e a prepotência não é aceite, para além de que, transmite à criança uma sensação de fragilidade parental.

As crianças têm perfeita consciência sempre que pisam o risco o que lhes confere sentimentos de culpa e negatividade sobre si próprias, pois apercebem-se da disputa ou desamor entre as discórdias dos pais na sua educação o que as deixa permanentemente insatisfeitas, com birras intoleráveis e que incorre sérios riscos de vir a experimentar comportamentos desviantes no seu desenvolvimento.

Segundo dados da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) de 2004 a 2012 perto de 4000 pais foram maltratados pelos filhos em ambiente doméstico. Daniel Cotrim, psicólogo e assessor técnico da direção da APAV ao divulgar estes dados ao Diário de Notícias considerou que as chamadas crianças tiranas são uma tendência geracional,  resultado dos últimos dez anos , fruto de educações demasiado liberais, sem regras, nem limites; ou ainda, o resultado de pais ausentes, seja pela distância física ou pela falta de disponibilidade mental para cuidar devidamente dos filhos. O Psicólogo refere ainda que existem tipos de filhos agressores aos pais, nomeadamente os filhos de famílias monoparentais, filhos toxicodependentes e filhos com psicopatologia, nomeadamente esquizofrénicos em que a agressividade é um dos sintomas.

Alguns destes agressores são menores e em caso de raparigas, o Juiz António Fialho vem declarar neste mesmo artigo do Diário de Notícias que o grau de rebeldia é muito maior, com tendência para atacar, magoar e comportamentos de risco, quer aditivos, quer sexuais.

Em 2008 o então Procurador-Geral da República Portuguesa Pinto Monteiro, considerou a violência contra idosos de investigação prioritária pela lei de Política Criminal, tendo-se constatado que muitos desses casos eram de idosos agredidos pelos filhos. Segundo Daniel Cotrim não é muito hábito os pais denunciarem os filhos, contudo, como a violência doméstica é um crime público, em muitos casos, o Ministério Público pode investigar mesmo sem queixa-crime.

Javier Urra, Psicólogo Espanhol, em fevereiro último, por altura da publicação do seu livro “O pequeno Ditador cresceu” afirmou ao referido jornal diário que “há uma pandemia de violência filial em países como Portugal e Espanha, onde crescem os casos de pais maltratados pelos filhos, por ameaças, agressões ou insultos. Segundo o autor, a agressão começa em crianças muito pequenas que insultam ou estragam coisas e passam de seguida ao mau trato verbal e alguns acasos atingem a violência física a pais silenciados pela sensação de culpa ou de vergonha, já em desespero quando solicitam justiça.

O pediatra e professor Belmiro d´Arce, ressalta que desde que nasce a criança comporta-se como um pequeno tirano. “Essa reação ocorre, primeiro, porque a criança não tem, ainda, mecanismo interno para lidar com frustrações e irrita-se, chora, grita, sempre que as coisas não saem como e na hora que quer; segundo, por não ter noções de valores, propriedades, espaços e direitos alheios: acha que o mundo todo lhe pertence, está à sua disposição e quer tudo que está a sua volta. Esse comportamento egoísta e tirano que ocorre desde o nascimento, deve ser gradualmente perdido através do processo de educação desenvolvido pelos pais.” Em muitos casos, os pais têm dificuldade para ajudar seu filho nesse processo de compreensão e amadurecimento emocional. Ele vai crescendo e continua a comportar-se como se tudo girasse em torno dele. É muito mais fácil para os pais identificar a tirania nos filhos dos outros do que no seu próprio filho.

Numa entrevista a um jornal brasileiro o psicólogo Francisco Bárbaro Neto defende que “a tirania não é um fator genético, mas construído nas interações sociais da criança”. Ele acredita que a família não é a única culpada por esse comportamento, mas que tudo pode contribuir para isso, seja o ambiente escolar, os seus amigos e inclusivamente, os programas televisivos.

A psicóloga Munira Akrouche foi também entrevistada sobre o tema e afirma que “a maioria dos pais fica muito tempo fora de casa e quando estão com seus filhos querem recuperar o tempo perdido, mimando de todas as maneiras”. Segundo ela, apesar da personalidade influenciar o comportamento da criança, é o ambiente familiar que mais influencia na sua formação e na construção da sua identidade, que ocorre durante a infância e a adolescência.

Sobre este tema, escreveu também o pedopsiquiatra alemão Michael Winterhoff defendendo a educação para viver em sociedade, considerando que os educadores erraram na metodologia da educação desde maio de 1968: “os pais andam completamente baralhados e olham para os miúdos como pequenos deuses, apoiam-se neles e eles são demasiado pequenos para todos os papéis que lhes são exigidos, não têm a maturidade psíquica para serem tratados como pequenos adultos. As creches, jardins-de-infância e escolas de 1.º ciclo educam para a individualidade. Estão estruturadas para olharem para as crianças como seres que devem desenvolver a sua imaginação, o seu ser individual, em vez de lhes mostrar "o caminho rumo a uma existência integrada na sociedade e recorda ainda que, nos últimos anos, falar em dar uma palmada já não é tão mal visto como antigamente.

Numa crítica, Winterhoff a Bárbara Wong refere que aquele é alemão e a maioria dos alemães não consegue ver as gradações de cinzento que há entre o preto e o branco. Concorda que vivendo em sociedade devemos educar nesta integração, mas como seres único, imaginativos, criativos, inteligentes e, acima de tudo, amados.

A Psicóloga Ivone Honório Quinalha refere que diante das novas configurações familiares e o declínio da função paterna, o olhar lançado às crianças perdeu, de alguma forma, seu tradicional significado de limites e referências para o desenvolvimento dos filhos. A substância emocional capaz de fundar a estruturação psíquica na constituição infantil ficou enfraquecida diante de tantas e tão intensas mudanças sociais e familiares. São crianças educadas para fazerem o que bem quiserem. Os limites passam longe delas. Por outro lado, os pais, desejando serem amados e queridos, não sabem de que forma devem se colocar diante de seus filhos.

A base dos comportamentos infantis são, de modo geral, reflexos da maneira como os pais respondem aos caprichos dos filhos. Os pais tentam minimizar as frustrações dos filhos e poupá-los das dificuldades da vida. Outras vezes estão preocupados com suas realizações pessoais e tentam suprir suas ausências agradando a qualquer custo os filhos, acabando por perder as funções parentais.

Ao sermos pais baseamo-nos nos nossos recursos internos, nomeadamente, nas referências do pai e da mãe que tivemos. Essa herança emocional será primordial para que possamos estruturar a nossa função parental. Se os pais conseguem priorizar momentos com os filhos, experimentar momentos amorosos com seus filhos, estabelecer fortes laços afetivos, estabelecendo regras e limites claros, com firmeza, mas sem excessos, nem culpabilidades, conseguirão ajudar os filhos a serem mais seguros e felizes.

Sofia Almeida